domingo, 26 de fevereiro de 2012

QUILOMBO RIO DOS MACACOS

Mais uma demonstração de como as instituições "públicas" atacam a população mais pobre, sem respeito humano ou à lei. Nesse caso (e em muitos outros) cabe questionar que tipo de instruções são ministradas aos militares para que tenham tamanho desprezo pelos mais fragilizados, enganados, sabotados e atirados a um segundo plano de valor social e pessoal, apesar de ser a classe mais imprescindível da sociedade, os que põem as mãos na massa, erguem paredes, carregam caixas, tiram o lixo, enfim, constróem, fazem a manutenção e ainda fazem a base do sistema tributário, via taxação extorsiva dos produtos de consumo básico.
Uma sociedade tão injusta, perversa e covarde só pode produzir instituições da mesma índole. Fosse um terreno de um banco, de alguma mega-empresa ou de um desses riquíssimos empresários mancomunados com o falso poder público e a marinha ia procurar outro lugar. Ou o governo indenizaria regiamente o proprietário, com todo o respeito e consideração. Constrangedor, de envergonhar ou revoltar qualquer um - menos, parece, aos que se dispõem a ser instrumentos, como no caso, os militares, que assumem a violência, os interesses e a mentalidade perversa dos poucos que controlam o Estado, escondidos sob o manto escuro do "mercado financeiro-industrial". O ódio e o desprezo que emanam de suas ações são característicos dessa gente (gente?).
Quem puder participar, na Bahia, taí a oportunidade e a necessidade. No mínimo, de denúncia. Os que estiverem longe, é possivel sempre divulgar pra desmascarar esse simulacro safado de democracia.



Dia 27 último representantes do governo federal foram à área e garantiram aos moradores a sua permanência por, pelo menos, mais cinco meses. Duvido que investiguem o assédio moral, as ameaças, as violências praticadas contra os habitantes do lugar. Imagino que a repercussão obrigou a tal ato, com o objetivo de tirar o assunto da pauta da imprensa, para esfriar. Depois, provavelmente, farão uma ação rápida para retirada da comunidade e, quando vierem os protestos, o fato estará consumado e a justiça tratará de deixar o tempo, muito tempo, passar, até que se esqueça e fique desse jeito, terras roubadas do povo que vivia nelas. Espero estar errado, mas é o procedimento padrão quando o assunto vem à tona. O tempo dirá.

E tá dizendo, olhaí. Dia 4 de março:
http://movimentodesocupa.wordpress.com/2012/03/04/marinha-recua-mas-a-resistencia-precisa-continuar/

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Do alto da Serra da Moeda

      Do alto da serra, eu contemplava a paisagem, recortada entre várias tonalidades de verde e salpicada de casinhas solitárias ou em pequenos grupos. Descansava da subida pela estradinha sinuosa numa grande pedra, dois carros haviam passado sem me dar a carona que eu pedia, foram coisa de três horas de caminhada, até o topo. Antes de começar a descer, resolvi parar pra descansar um pouco e apreciar o panorama. Subi por umas pedras ao lado da estrada, no ponto mais alto, e alcancei a plataforma, em cima de uma pedra que se projetava, de frente pro outro lado da serra - onde eu desceria pelas curvas da mesma estrada. Sabia que elas estavam por ali. Afinal, depois de dois meses de procura e quatro de ausência, estava perto de encontrar. A fazenda Mãe D’água era uma daquelas, lá embaixo. Sentei na pedra, olhar solene sobre a paisagem até o horizonte montanhoso, o silêncio continha o murmúrio do vento frio. A expectativa do encontro me dava estranhas sensações, misturadas com as memórias da viagem. Quatro meses. Brisa devia ter crescido bastante, eu quase morria de saudades, meus olhos enchiam de lágrimas ao lembrar da falta que eu sentia, atordoante em alguns momentos. Agora as lágrimas continham alegria. Eu estava chegando. Não conhecia o lugar, nunca andara por ali, estava chegando por indicações. E se não as encontrasse? E se as informações estivessem erradas ou elas já tivessem ido embora, como em Vitória?
      Não fosse o marroquino e talvez eu as tivesse encontrado em Salvador ainda, onde elas tinham ficado quando saí pra estrada, fugindo das brigas que se agravavam a cada dia. Saí no rumo norte, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa. A ferida no pé me obrigou a parar na Paraíba. Fui até a praia, mergulhei o pé no mar, dei um tempo pra amolecer, depois esfreguei com força, pra tirar os tecidos mortos, reavivando a ferida, mas retirando o que já estava podre. Depois, deitei na varanda de uma casa aparentemente abandonada, vidros quebrados, folhas secas cobrindo o chão, muita poeira, pus o pé sobre a mochila pra esperar a dor passar. Aí o “acaso” me enviou Marisa, médica que, sem saber porquê, me vira ali, de longe, e resolvera me abordar e perguntar qual era o problema. Chamou do portão a uns trinta metros, não respondi, fechei os olhos, esperando que fosse embora. "Ei, moço!", ela insistia. Abriu o portão baixo, entrou aos poucos, "moço", "psiu". Eu demorava a responder, achando que ela viera me mandar sair da casa. Ela dentro do terreno, eu fingindo que dormia, de olhos fechados, pensando "pronto, já vieram reclamar da minha presença", esperei que fosse embora, mas ela insistia, “ei, moço, dá licença?” Não deu certo. Levantei a mão, a palma virada pra ela, “já vou sair, só entrei pra descansar um pouco”, ela entendeu e disse “não, eu não vim pedir pra sair, não tenho nada a ver com essa casa”. Levantei a cabeça, olhei, ela queria saber do meu pé. "tava inflamando mas já tô tratando". "Mas tá inchado até a perna", ela encostou a mão, "eu sou médica, tá?" Médica diferente, nem parecia. Conversamos, eu não queria ir pra hospital nenhum, ela insistia. “Eles não respeitam gente como eu”, “não, eu conheço todo mundo lá, é um hospital universitário, garanto que vão te tratar com respeito”.
      Eu demorei a acreditar, mas a situação me obrigava a ir, a ferida já tinha mais de um mês, piorava nos períodos de estrada, quando chegava ao litoral metia o pé na água salgada, e limpava a inflamação, abrindo mais o buraco no dedão. Depois, ia pra estrada, e aí piorava de novo. Inchava a perna, ficava difícil caminhar e eu mancava. Não podia ser à toa aquela médica ali, sem eu chamar. Era pra ir, senti. No hospital, eram quatro examinando, conversando entre si sem me olhar. Falaram em amputar e eu ameacei os quatro acadêmicos de morte. Se fossem cortar meu corpo, seria melhor cortar o pescoço, porque se eu ficasse vivo iria buscar um por um, “no inferno”, se precisasse. Marisa interferiu pra aliviar o ambiente, pedia por mim aos acadêmicos, dava pra ver que ela tinha uma posição de hierarquia sobre eles, que confabularam entre si e resolveram fazer uma cauterização. O cheiro de carne queimada tomou o ambiente, a dor era enorme, a anestesia não pegava, por mais que eles aplicassem. Suportei pensando que era pra não perder o dedo ou o pé. Saí com um curativo e a recomendação, "se latejar volta rápido pra não perder o pé". Quinze dias depois eu estava em Canoa Quebrada, Ceará, a quase mil quilômetros dali, com o pé pronto pra outra.
      Ali conheci o marroquino, que falava espanhol com sotaque francês e isso dificultava sua comunicação, era difícil entender o que ele falava. Mas pra mim, parecia fácil, eu entendia tudo e conversava com ele sempre, tocávamos violão juntos, improvisando com bastante harmonia. Ele pretendia chegar ao Uruguai. Vinha de Guadalupe, onde morou por um tempo, fugindo da França, onde era hostilizado como africano. Seus pais eram franceses, mas ele nascera no Marrocos. Quando houve a libertação, os pais voltaram pra França e ele foi pra uma escola, ser marginalizado, discriminado até resolver ir embora. No Caribe, produzia bongôs em cerâmica e tocava em festas. Conhecera uma uruguaia em férias, tiveram um romance e marcaram de se encontrar no Uruguai. Ela fora de avião; ele tomara um barco até Belém e seguia de carona, aos poucos. Soube que eu iria pra Salvador - a saudade estava se tornando insuportável, queria ver minha filha - e pediu pra viajar comigo, alegando dificuldade em se comunicar. Eu sabia que dois na estrada seria muito mais difícil conseguir carona, mas topei ir com ele. Pra quê...
      Foi quase um mês de viagem, de Canoa Quebrada a Salvador, dormindo nos acostamentos, nos postos, abrigados em celeiros, em garagens, pendurados em árvores, nas nossas redes. Acomodado na sua dificuldade de comunicação, ele deixava todos os problemas serem resolvidos por mim. Chegando em Salvador, fomos direto a Mar Grande, na ilha, onde deixara Brisa e a mãe na casa em que morávamos. A casa havia se tornado alojamento da Sucam, o funcionário não sabia nada sobre as duas. Procurei pela vizinhança, soube que haviam viajado duas semanas antes. Pra onde, ninguém sabia. Voltamos a Salvador, para procurar outros amigos, em busca de alguma informação que indicasse o paradeiro. No Terreiro de Jesus, a caminho do Pelourinho, de repente, Freddy – era o nome do marroquino – me pergunta “sabe onde podemos trocar uns dólares?” Olhei pra ele, estarrecido. “Dólar? Você tem dólar? Todo esse tempo perdido na estrada, eu tendo que arranjar o que comer, onde dormir, carona, tudo, e você tem dólar?!” Ele ficou sem jeito, “são poucos, tenho que guardar pra chegar no Uruguai...” Filho da puta, ele sabia de tudo, eu contava pra ele, falava da minha filha, chorava de saudade. “Cara, viajar contigo me atrasou, esse tempo todo na estrada, perdi minha família de vista muito por sua causa e agora cê vem me dizer que tem dólar?!!” Eu estava furioso.Ele recebeu minha fúria, sem responder, o olhar envergonhado.“Sei onde trocar, sim”, eu disse, finalmente, "dáme la gita", ele me deu as notas de dólar. Fomos a uma funerária, na praça da Sé, onde um cara muito gordo trocava dólares pelo preço do dia no jornal. Trocamos 50 dólares, dei as notas a ele, que me mostrou o jornal, a conta na máquina de calcular e entregou o dinheiro. Contei as notas na frente do marroquino, duas vezes. Na segunda, mostrei a ele que estava pegando a metade. Ele esboçou reação, mas fui bem decidido, tava no meu direito, fora guia, tradutor e responsável por ele. Em troca, cheguei tarde demais. Se não estivesse satisfeito, que fosse embora, aquele dinheiro era meu e ponto final. Com ele eu poderia me dedicar a procurar minha filha sem perder tempo com as coisas da sobrevivência. Ele acabou concordando e continuamos parceiros.
      A notícia mais plausível era a de que as duas tinham viajado para o Espírito Santo. Tudo na base do “eu acho”, “me parece”, “tenho a impressão”. Mas fazia sentido, a família de origem da mãe era de lá, ela dependia do meu trabalho e não soube se virar pra sobreviver em Salvador. Fora tentar uma carona de avião, era a última notícia, depois elas não foram mais vistas. “Devem ter conseguido”, imaginei. Alguém mencionou, “eu acho que ela tava grávida”, mas eu rechacei de imediato. A velha tendência em ver a realidade da forma que desejamos que ela seja. Simplesmente apaguei a informação da minha mente. E fui pra estrada, na direção de Vitória. Freddy tinha se apaixonado e resolveu ficar em Salvador – e se não resolvesse eu o teria dispensado, pra viajar sozinho. Aquela dos dólares tinha sido demais. E eu não queria mais encosto, viajar sozinho era mais rápido.
      No Espírito Santo, consegui mais notícias. Elas haviam estado por ali, mas a mãe se desentendera com o pai dela e com as irmãs e fora embora. Alguns dias depois, enviara pra irmã mais velha um número de caixa postal em Belo Horizonte, dizendo que estava numa fazenda tipo comunidade, no interior de Minas Gerais. Não disse onde – e Minas tem mais de seiscentas cidades. Escrevi para a caixa postal, esperei quinze dias e nada. O que sabia era que a fazenda, “Mãe D’água”, vendia produtos em lojas naturais da capital, mel, pão integral, essas coisas. Fui pra lá.
      Fiz uma romaria pelos naturais de BH, até encontrar indicações de onde era a tal comunidade. Vagas indicações, com muitos erros, como pude constatar na procura. Saí da cidade na madrugada, clareando o dia consegui uma carona num carro com dois casais jovens como eu. Contei minha história pra eles, ia completar dois meses procurando minha família, depois de outros dois viajando a esmo, pelo nordeste. Eles se encantaram com a história e assumiram a procura. A informação era de que a saída pra fazenda era antes do trevo de Ouro Preto, pela BR-040, à esquerda, atrás de uma churrascaria. E que havia uma grande placa indicativa. Entramos em todos os postos à esquerda da estrada e nada. Chegávamos ao trevo e me perguntaram, “e agora?” “Agora, cês me deixam aí no trevo e seguem viagem, que eu me viro”. “Ah, não, nós queremos saber o fim da história”, a resposta foi unânime. Pra eles, parecia que o fim da história era descobrir onde era a tal fazenda. “Então pára perto desse capiau aí”, o cara caminhava pelo acostamento, enxada no ombro, uma grande sacola de pano pendurada do outro lado. O carro parou ao lado dele, a moça da frente abordou, “ei, amigo, sabe onde é a fazenda Mãe D’água?”, o lavrador só balançou a cabeça, negativamente. Interferi, “compade, é uma gente colorida, de cabelo comprido, cria abelha, faz pão, várias pessoas morando juntas...” Os olhos dele foram se iluminando e ele disse “ah, é a fazenda dos hippies”, e todos riram, “fica mais pra frente meia légua, tem uma praquinha redonda ansim, do lado de uma abertura na cerca, é só seguir a estradinha morro acima”. A entrada era três quilômetros depois, à direita, pequena, longe de qualquer churrascaria ou mesmo construção. Não tinha nada além de uma plaquinha redonda "ansim", com uma flor de lótus no meio e escrito "Comunidade dos Sarvas - Fazenda Mãe d'Água". E a estradinha que sumia na direção da serra da Moeda. Ali nos despedimos, pra eles era o fim da história.
      Agora eu tava no topo da serra, olhava a paisagem e imaginava em qual grupo de casas elas estariam. Olhava até o horizonte e revivia toda a procura, estava chegando, iria ver minha filhinha, que saudade. Havia rechaçado a suspeita de gravidez com violência, “tá maluco, rapaz, a gente nem trepava mais!” Era verdade. Aliás, meia verdade. Eu lembrava de uma noite... Não, não era possível. Era, mas eu não queria que fosse. Será? A gravidez de Adhara já ia pelo quinto mês. E eu não sabia.
      O suor havia secado, vesti a camisa, levantei. Coloquei a mochila, peguei a rede enrolada, o violão, pendurei tudo nos ombros. Dei uma última olhada naquela beleza toda, voltei pra estrada e comecei a descer a serra.
      

O nascimento de Brisa

           (Esta história é um capítulo do "Crônicas e Pontos de Vista")


           Pô, cara, não dá pra botar um cobertor em cima dela, não? Ela se tremia toda na maca de metal, um lençol pequeno e finíssimo por baixo e outro por cima, saindo da sala de parto a caminho da enfermaria. O maqueiro pareceu envergonhado, não dá, indigente não tem direito a cobertor. Diante do meu olhar espantado ele fez cara de que não podia fazer nada. Eu entendi. Falei com ela, vou buscar um cobertor, e saí do hospital pra casa. Não dão cobertor pra indigente! Cambada!
            Na chegada já tinha dado problema, a gente não tinha a tal matrícula, disseram que não tinha vaga pra indigente. Depois de muita discussão eu disse que ia fazer o parto ali fora mesmo e chamar a Tribuna da Imprensa – o jornal de oposição –  pra registrar. Fui saindo com ela, cheia de dor, segurando a barriga, me olhando e falando baixinho, cê tá maluco? Baixinho também, perto do ouvido dela, eu disse vai por mim, e a vaga apareceu como por encanto.                         
            Foi o dia todo esperando, sem poder chegar perto, mandando bilhetinho pra dar força, ficamos logo amigos dos mais pobres, faxineiros, auxiliares, atendentes, enfermeiras (auxiliares de enfermagem). Eles faziam a ligação, levavam as coisas que eu trazia, maçã, iogurte, bilhetinhos. O de comer, ela não podia, ficou tudo esperando na geladeira até o dia seguinte.
            Passáramos a gravidez pelo nordeste, viemos descendo de Natal aos poucos, parando em várias cidades do litoral. Chegamos em Vitória no oitavo mês, alugamos um barraco de tábua, numa encosta cheia de barracos. Decidimos fazer o parto em casa, nenhum dos dois tinha a menor experiência, depois de uma noite inteira de contrações ela começou a apagar depois que acabava cada contração. Aí resolvemos ir pro hospital.
            Cheguei em casa, espalhei na vizinhança, nasceu, é uma menina, vim buscar um cobertor, que no hospital eles negaram. Juntei umas frutas, pão integral, cobertor, toalha, sabonete, roupa limpa, escova de dentes, revistas em quadrinhos, caderno e caneta, os vizinhos arrumaram mais coisas, mandaram pedaço de bolo, torta salgada, manga, roupinhas de recém-nascido que estavam guardadas. Ia colocando tudo numa mochila, me emprestaram uma mala preta, pequena. Como é que eu ia entrar no hospital?, me perguntaram, naquele horário estava fechado. Eu não tinha pensado nisso, mas só ia pensar quando estivesse lá.
            Eram por volta de onze e meia quando cheguei no hospital, a casa era longe do centro. Tudo fechado. Algumas janelas do andar de cima estavam abertas, poucas e de difícil acesso. Havia os postes, mas como subir com a mala? Devia ter vindo de mochila. Fui andando em volta, procurando por onde entrar. De repente, vi uma porta aberta, a luz acesa dentro, letreiro em cima, emergência. Nenhum movimento. Do outro lado da rua, subi metro e meio no poste, olhei, era um balcão em L, formando um quadrado com o canto da parede. Dentro, mesa e cadeira, com um cara sentado na cadeira inclinada, os pés em cima da mesa, lendo um gibi. Mais ninguém. É por ali, pensei.
            Cheguei sem fazer barulho, abaixando um pouco, eu não via o topo da cabeça dele e ele não me veria, se eu não fizesse barulho. Sandálias de borracha, passei em silêncio completo. Entrei num corredor, fui caminhando normalmente, esperando ser barrado a qualquer momento e pronto pra argumentar. Mas não apareceu ninguém. Subi a escadaria pra enfermaria da maternidade, pisando leve, e passei a andar entre os aposentos, cada um cheio de camas com pacientes, até que a encontrei, sentada e acordada. Ela tomou um susto quando me viu, mas nem respondi a pergunta, como é que cê entrou?, fui logo mostrando tudo o que trouxera, depois queria saber da criança, como fora o parto, a gente pensava que era menino, cadê, só vão trazer de manhã.
            Ouvimos passos e não deu tempo de nada, a enfermeira me viu, lá do corredor, e armou o circo, por mais que eu pedisse silêncio. Veio a polícia de plantão, o médico de olhos vermelho, tava dormindo, hein, dotô, o guarda riu disfarçado, vambora rapaz, pode deixar, eu saio por onde entrei, nada disso, vai sair pela porta da frente. Abriram aquela porta enorme, pesadona, e eu fui pra madrugada. Nem pensei em ir pra casa, que que eu vou fazer em casa? Vou andar por aí. De madrugada, na praça do centro, onde expunha meus artesanatos, sentei na escada do teatro Carlos Gomes, pensativo. Durante toda a gravidez nos disseram que era menino. Barriga pontuda. Videntes, místicos, todos afirmavam a macheza da criança. Não houve uma voz dizendo que era menina. Eu tinha tanta certeza que, quando a enfermeira que ajudou no parto veio me dizer, eu ri e respondi, não, é menino. Ela me olhou sem entender e eu, bem calmo, cê devia estar em outro parto, a minha mulher é aquela loura magrinha. Ela inclinou na minha direção, olhou dentro dos meus olhos, eu sei muito bem qual é a sua mulher, eu estava no parto dela, e é menina! E saiu. Fiquei sem reação.
            Sentado na escada do teatro, lembrei que não tínhamos nomes de mulher, só de homem. E agora? Pensava nisso, quando o vento aumentou e eu senti frio. Olhei o alto das árvores se inclinando, me encolhi um pouco, lembrei das praias do nordeste, é, acabou o verão, essa já é a brisa do outono. Mal acabara de pensar e como que acendeu em letras de luz na minha cabeça, Brisa do Outono. Esse é o nome!
            No dia seguinte, fui surpreendido com a recepção no hospital. Esse é o cara que invadiu de madrugada. Muitos me cumprimentavam, sorriam, os escalões mais baixos sorriam abertamente, alguns me deram tapinhas nas costas. Logo na entrada, entre os sorrisos dos servidores, uma voz de autoridade soou, acima do tom geral. Era um professor chefe, todo mundo murchou quando ele disse, então cê acha que tem o direito de invadir um hospital de madrugada, rapaz? Mais do que deixar uma mulher parida sem cobertor, tremendo de frio, tenho mesmo, respondi de pronto, no mesmo tom. E me espantei com o espanto geral, todos saíram pra cuidar do serviço, parecia uma debandada. O mestre fechou a cara, resmungou qualquer coisa sobre "esses caras" com os assistentes que estavam perto dele e saiu, depois de me olhar de cima da sua superioridade social. Os acadêmicos eram bem atenciosos, ao contrário dos professores, que me olhavam com desprezo explícito e franca condenação. Mas depois daquilo, não se arriscaram a falar comigo. Entre os subalternos, a simpatia voltou a ser a mesma, longe dos superiores.
            Subi e vi pela primeira vez a minha filha. Cor de rosa, sem cabelo, um bichinho, só acordava pra mamar. Disse o nome à mãe, ela achou ótimo. Peguei a criança no colo, olhando. Fiquei procurando a sensação de ser pai, não via diferença, a não ser aquela coisinha nova e completamente dependente. Foi com o tempo que o olhar da criança me impôs o sentimento de pai. Nem trocando as fraldas ou curando o umbigo eu tive tão clara a posição de pai.
            Naquele dia mesmo, à tarde, pudemos ir pra casa. 

(Pedidos pelo arteutil.em@gmail.com. Por aí se fala direto comigo, sem intermediários)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Livro "Crônicas e Pontos de Vista"

Durante a composição do livro, Rodrigo Rosa, o editor, me pediu pra fazer um texto homenageando alguém que eu admirasse, dedicando o livro. Eu disse que não queria fazer isso, não via porque dedicar o livro a ninguém além das pessoas que o lessem. Ele insistiu, disse que não precisava ser ninguém vivo e aí eu lembrei do meu pai, da nossa história inacabada, interrompida por sua morte inesperada. Então fiz o texto, que foi colocado na abertura do livro. 

A meu pai

Senti a dor que lhe impus. Lamentei cada fração dessa dor. Ninguém acreditou. Eu me tornei o agressor, o ingrato, aquele que desprezou todos os esforços feitos em meu próprio benefício. Um traidor da família.

Lamentei cada grão da dor que minhas atitudes provocaram. Ninguém viu, ninguém sabe, ninguém acredita. Durante muito tempo, minha família de origem deixou de existir em minha vida, eu deixei de existir na vida dela. Creio que em meu pai a dor foi mais profunda, pelas projeções a meu respeito que ele viu desmoronar.

Ah, meu pai! Esperei, na certeza de um dia você entender que foi minha busca por justiça, minha inconformação com a situação absurda da nossa sociedade, o que moveu minhas atitudes, depois de várias tentativas de me enquadrar em alguma posição convencional – apenas para não ferir, pois tais conquistas já não me empolgavam, ao contrário, me pareciam uma espécie de rendição, de conformação, de injustiça.

Quando soube da sua morte, tive o sentimento de que o nosso abraço tinha sido adiado, "agora só quando eu chegar do outro lado, também”. Lá deve ser mais fácil compreender os valores que me guiaram, pois aqui os valores sem sentido são impostos e têm base na forma, no aspecto, no externo. Nosso entendimento talvez já se esboçasse, nos últimos tempos, mas não seria nesse plano. A casa onde moro foi comprada por ele, em decisão própria e para minha surpresa, três meses antes da sua partida. Agradeci pela casa e lhe desejei boa viagem e boa chegada. No vazio que senti naquele dia, diante da ausência, da carência, do amor distante e pleno, escrevi na última página de um caderno, sem pensar, apenas sentindo, muito, esse pequeno texto de despedida e esperança que exponho mais abaixo.

É preciso explicar que, quando nasci, meus pais tinham, ambos, 39 anos. Nos meus 19, quando me expus ao sol do mundo, estavam nos 59 anos. Quando tornei a encontrá-los, os sinais do tempo eram bem marcantes, quinze anos haviam se passado. Eu lhes ficara tão estranho que a distância permaneceu grande – agora menos física, mais sensorial, ideológica, vibracional. A visão de mundo desenvolvida na vivência em pleno chão da sociedade é francamente rejeitada, hostilizada, negada raivosamente não só por eles, mas por toda aquela classe, à qual eu já não pertencia.

“Tivemos tão pouco tempo...
acabei nascendo tarde
e pensando diferente.
Tivemos tão pouco tempo...
e o pouco tempo que tivemos
foi sem muita intimidade.
Cresci tão distante,
fiquei tão estranho,
estivemos tão longe
tanto tempo...
O pouco que tivemos
jamais intimidade
e, no entanto,
eu o amo, tanto, tanto...”

Amor incondicional. Lamento sua visão da minha pessoa e dos meus valores, mas respeito inteiramente, mesmo discordando. Não tenho verdades, mas impressões, opiniões, intuições. O tempo se encarrega das mudanças que não pudemos realizar e que são inevitáveis. Formar a própria visão de mundo e as opiniões é direito e responsabilidade de cada um.

Grande amor, grande respeito e vontade de encontrá-lo, quando chegar o momento.


==========================================================================================================
++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++
==========================================================================================================



Noutra ocasião, Rodrigo comentou a necessidade de fazer correções, ortográficas, gramaticais, de concordância. Eu disse a ele que não devia corrigir nada, tudo estava escrito como eu queria. Ele argumentou, muita coisa estava fora das regras e eu expliquei porquê não queria correções. Compreendendo minhas razões ele pediu pra escrever o que tinha acabado de falar. Foi o segundo texto do livro, pra já prevenir os leitores do que vinha pela frente...


Tomando as rédeas das regras 
- ou Declaração -

   

No princípio era o verbo, disseram. Não acredito. No princípio, nem havia ser humano. Se é que houve algum princípio, assim como a gente entende. Eles dizem um monte de coisas, mentiras a rodo, e nós vamos acreditando na vida de gado. Ê boiada, luta, luta e não arruma nada. A língua escrita quer ditar as normas pra língua falada.

A língua que manda é a falada. A escrita veio depois e anda atrás, toda metida, dando as ordens que a gente não cumpre. A fala vai na frente, mutante, dançante, flutuante, os novos chegando e formando suas mudanças, sem levar regras em conta. A escrita vem atrás, negando, apontando erros que com o tempo vai engolir, impotente diante da força do uso, no dia a dia. O dicionário está cheio de palavras que foram desprezadas como ignorância. A prática se impõe à teoria.

Recentemente, intelectuais de vários países lusófonos se reuniram para definir regras gerais e “unificar” a língua portuguesa no mundo. Aqui da minha ignorância, eu acho um disparate essa iniciativa. Passei os olhos nas tais regras e meu coração repeliu grande parte delas. Esses caras, parece que não conhecem a realidade, não perdem a mania de querer impor de cima pra baixo o que só nasce de baixo pra cima. Deve ser a cegueira da arrogância, não sei.

Não escrevo para receber louvores acadêmicos ou qualificações literárias. Escrevo na forma comum de entendimento da maioria dos que podem entender o que lêem (o que já é minoria, embora numerosa). Pra entrar nos corações e mentes e mexer com alguma coisa lá dentro. Pra causar questionamentos e reflexões sobre a sociedade e a vida. 

Enquanto as elites intelectuais arrotam regras, em sua costumeira soberba e idiotia, nós vamos falando por aí, construindo a língua com o falar, inventando palavras e significados, sons e expressões, com os pés na realidade, não nos pedestais.

Declaro meu descompromisso com as regras gramaticais. Uso a escrita como achar melhor, meu foco é o receptor e a recepção é a parte mais importante da comunicação. Não há controle sobre a fala. Os meus escritos tentam falar na linguagem comum, usada e entendida por qualquer um. Lido em voz alta, quero soar como a fala e seu cantar.




Desenho original para a capa do Crônicas e Pontos de Vista
No alto à esquerda, a imagem do sertão, presente nos meus primeiros anos de estrada, sem casa nem paradeiro. Uma realidade forte, difícil, grandiosa, um povo resistente e solidário, duro e carinhoso ao mesmo tempo. Acima, ao centro, simbolizo as praias onde morei e vivi, a maior parte do nordeste. À direita, a cidade, a floresta e a montanha, onde vivi depois, já com filhos. No meio, à esquerda, uma feira de artesanato vista de trás das bancas, as mochilas e bolsas no chão, as pessoas olhando as bancas, a parte de trás dos painéis, imagem que vivenciei por tantos anos. A estrada infinita simboliza não só a vida, mas a própria infinidade. As palafitas são uma imagem que registrei com força no recôncavo baiano, em Maragogipe, onde fui recebido e hospedado por pouco tempo, mas que deixou marcada na memória a vida precária dessa gente sofrida e abandonada à própria sorte. Embaixo, o menino jogando bola com a arma na mão, uma reprodução livre de uma situação acontecida no Rio de Janeiro, embora eu não tenha sido fiel ao cenário. Fiz um desenho mais elaborado desta situação, "Ninguém nasce bandido", que tá no blog com a explicação da história, lá no comecinho, é uma das primeiras postagens. Situado no Rio, com o Corcovado e o Cristo ao fundo, alusão à área de Santa Teresa, onde vi a cena.


O "Crônicas...", hoje - correção feita em 31 de julho de 2020, o ano da pandemia - só existe em pdf, no saite - www.observareabsorver.com.br -, junto com outras publicações. 

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Ordem Criminosa do Mundo / El Orden Criminal del Mundo

Está aí a realidade que exercemos, está aí a criação dos valores que pensamos que são nossos ou mesmo que são valores naturais, convencidos desde o inconsciente por um trabalho direcionado, tramado pelos mega-conglomerados empresariais, pelos grandes banqueiros e industriais de todos os ramos e aplicado, principalmente, pela mídia de todos os tipos, com a linha de frente na televisão. Questionemos nossos valores, nossos comportamentos, nossas expectativas e, sobretudo, nossos desejos e objetivos de vida. E encontraremos, talvez surpresos, condicionamentos que exercemos sem perceber, usos e costumes que não teríamos se não fôssemos levados por uma repetição sob inúmeras formas, desde a infância ("Criança - a alma do negócio" é um documentário digno de ser visto).

Outro documentário fundamental pra quem quer se esclarecer é "O Século do Ego", que mostra como os conhecimentos a respeito do inconsciente foram usados pro condicionamento das populações. Não percebemos o quanto somos condicionados, o quantos somos impregnados de valores falsos. É preciso criar nossos valores, comportamentos, desejos, mudando tudo. Assim a vida terá sentido e assim, um dia, mudará o mundo. Pois somos nós que o fazemos da forma absurda que ele é.

Este é um documentário que fala do mundo como um só e do ser humano como uma única família. É preciso cuidamos uns dos outros e não aceitar, nunca, a existência de miseráveis, onde quer que seja. Toda miséria tem causa e a causa mais freqüente é a ganância dos controladores do mundo, dos fazedores de guerras, dos exploradores de recursos e de seres humanos. E somos todos coniventes, em maior ou menor grau.

Tá tudo no youtube. É só procurar.

Bom proveito.




Esse me chegou hoje, dia 7, enviado pelo Victor, do "Escafandristas..." e vai na mesma linha de mostrar o que acontece no mundo pra haver tanta miséria e sofrimento. É preciso entendimento, há um despertar, toma-se, aos poucos, consciência. O "Vozes contra a globalização" fala em espanhol, francês, inglês, português, vozes do mundo todo - feio e bonito, esse filme. A mídia só é citada no finalzinho. Acho que seria preciso cada um vasculhar em si mesmo os condicionamentos que nos levam a sustentar essa estrutura, desde nosso inconsciente, nos valores, nos desejos, nos objetivos de vida e, sobretudo e conseqüentemente, nos comportamentos. O filme dá uma bela pista a percorrer e no final aponta uma causa das mais importantes, criada, desenvolvida e usada pelos mais ricos do mundo - a mídia. Há décadas, gerações e gerações.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.