terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sociedade, fogo e mídia


Foto: Luiz Armando Vaz / Agencia RBS


Então a mídia tá explorando o sofrimento? Transformando dor em espetáculo? Discute-se a maneira de apresentar os fatos. Respeito pelas famílias, pela dor de parentes e amigos. Fala-se em sensacionalismo, insensibilidade, desumanidade. O incêndio da boate dos universitários, uma grande tragédia coletiva, ocupa enorme espaço nos noticiários, explorando as emoções com perguntas e closes em sofrimento explícito. Questiona-se a ética dos meios de comunicação. Procuro olhar além da questão ética.

Quase ao mesmo tempo desse incêndio, pouco depois, eu creio, mais uma comunidade pobre em área valorizada pegou fogo. Dessa vez em Porto Alegre – São Paulo teve uma epidemia, recentemente, que não acabou * –, queimou a Vila Liberdade, próximo ao novo estádio de futebol que foi preparado pra copa do mundo. O destaque da mídia no incêndio que matou centenas de universitários foi o biombo perfeito, o procedimento rotineiro dos meios de comunicação privados. Interessa ao lucro, às empresas, a minimização de mais essa “cauterização” social, sempre no trabalho de expulsar pobres das áreas ricas ou em vias de valorização. Nada de surpreender. O fogo tem sido utilizado como uma das formas de expulsão, controle, diminuição, avanço do interesse no lucro por cima das comunidades pobres, culturalmente desprezadas e criminalizadas pelos meios de comunicação. Se fossem contar a quantidade de mortos nesses incêndios que ocorrem em todo lado, criminosamente, seriam milhares e milhares. O número de famílias expulsas, que tem seus poucos e essenciais pertences queimados, que tomam destino ignorado, não tem conta. Há séculos essa é uma característica da nossa sociedade. Tiros, sabotagens, terrorismo, mandatos judiciais, polícias ou jagunços, enchentes, desabamentos ou fogo, qualquer recurso pode ser útil a esse procedimento desumano tão comum, tão corriqueiro nessa estrutura torta, que impõe uma aceitação quase automática pela coletividade, como fatalidade, falta de sorte ou qualquer coisa, a mídia é criativa, quando precisa. 

O incêndio da Vila Liberdade não é apenas um incêndio. É um procedimento social, uma ferramenta, um recurso usual de empresários sem caráter nem humanidade, em conluio com as mídias e usando políticos comprados nas campanhas eleitorais.

A discussão ética me parece dispersão. É sabido e conhecido o desprezo do interesse pela ética. Esse é o comportamento padrão desses meios descontrolados, tão influentes nos parlamentos, nos governos e nos tribunais. Como vou discutir a ética da mídia se não vejo nenhuma ética na mídia?

Dias atrás, numa rádio de notícias, os jornalistas falavam de uma manifestação periférica. Moradores de um bairro pobre interromperam uma importante avenida, queimando pneus e encarando a polícia local, causando enorme congestionamento. Esse era o foco da reportagem, os transtornos nas vias em plena hora de trânsito brabo, seis horas da tarde. Era preciso chamar o bope, trazer os helicópteros pra acabar com aquilo. O problema era falta d’água, que fossem reclamar na prefeitura, não tinham o direito de atrapalhar o movimento de uma via central, interrompendo o fluxo já por si tão denso nesse horário, literalmente parando vários eixos de circulação em vários municípios da grande metrópole. Os motoristas estavam nervosos, irritados.

Logo em seguida, os repórteres denunciaram o absurdo do aeroporto Santos Dumont estar sem água desde a manhã desse dia. Os passageiros eram obrigados a comprar água fora do aeroporto. Questionavam a administração, cobravam pela água, o desrespeito com os passageiros. Ainda por cima com defeito no sistema de ar condicionado, era uma situação inaceitável. Caso pra investigação e determinação de responsabilidades. A reportagem descrevia cenas de passageiros sentados, se abanando entre garrafinhas de água, entrevistava pessoas revoltadas, denunciava o absurdo. Quase dez minutos de falatório, com direito a comentários dos "especialistas".

Na periferia, aquela coletividade de milhares de famílias, com idosos e crianças (nunca é demais lembrar), estava sem água em suas casas havia mais de uma semana. É possível viver sem água? A desassistência pelo poder público chega a esses extremos. Mas na ideologia da mídia, esses são probleminhas inevitáveis de qualquer sociedade, o que não pode é interromper o fluxo das coisas. Nem desassistir as áreas onde transitam as pessoas visíveis, classes minoritárias que tem desde seus direitos garantidos até privilégios ostensivos (e ofensivos). Se os moradores do bairro pobre fossem se manifestar em frente à prefeitura periférica, longe dos holofotes da mídia, seriam expulsos dali a tiros de borracha e gás lacrimogênio. Como acabaram sendo, na via pública importante. Só que ganharam visibilidade e no dia seguinte a água chegou em suas casas, pelo temor de novos problemas que afetassem os municípios vizinhos maiores. Racionada, mas chegou. Com pouco a população se vira. E dá-lhe migalhas. Investigar as razões e as responsabilidades pela falta de água, por uma semana, numa comunidade com milhares de famílias não passou pela cabeça dos repórteres. É uma obrigação do poder público e a necessidade mais fundamental que existe. Mas para a mídia, só se fosse em outros bairros, com outra gente. Menos pobre, claro. Essa maioria não cabe nas telas de tv, nem nas ondas de rádio.

Não há que contestar a mídia, nem apontar algumas de suas falhas. Toda ela, a mídia comercial, é falha, a partir de sua origem obscura e suas relações mais obscuras ainda. A alma da mídia privada cheira a esgoto. A estrutura das comunicações do país está dominada, apesar das lutas para liberar essa área estratégica da sociedade. E joga contra o povo todas suas forças, no sentido de concentrar poderes e riquezas, de explorar a população e o patrimônio público, de impor ao Estado o roubo dos direitos da maioria e na criação de privilégios para a minoria dominante e seus servidores de luxo. Os privilégios são formados com o roubo dos direitos.

Mas essa estrutura de controle das comunicações (e social) está com furos. Cada vez mais, a mídia se desmascara, se entrega. Os vazamentos se fazem, a internet mostra o outro lado, as informações por trás das informações. Quem tem foco, quem busca saber as verdades, sem buscar as verdades convenientes, tem acesso aos fatos reais, ou mais próximo da realidade que a mídia prima por esconder ou distorcer. A maioria ainda tem a cegueira dos viciados, entorpecida pela própria mídia. Mas quem acorda chama outros. Esse é o processo. Sem esperar resultados prontos, apenas participando da caminhada. E isso dá sentido, motivação e satisfação à vida.

* http://observareabsorver.blogspot.com.br/2012/09/fogo-nas-favelas-de-sao-paulo.html





quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Assentamento Milton Santos em risco de ser "pinheirinhado" pela polícia.



A terra é pouca, perto dos sete mil hectares que a cercam e que pertencem à usina de cana. O movimento dos fazendeiros tem outro endereço.

Canudos foi a mesma coisa. Era um punhado de sertanejos que dava seu jeito pra viver, de forma comunitária e sem propriedades, pois a terra era de todos. Não incomodava à recém nascida república, nem era assunto nacional, até que os fazendeiros ricos pressionaram pra acabar com aquilo. Afinal era um tremendo "mau exemplo" pra população miserável e explorada, vivendo comunitariamente, dividindo tudo, repartindo alimentos e medicinas, independentes dos poderosos da época. Aí eles viraram uma "ameaça à segurança nacional", "monarquistas reacionários", subversivos perigosos. Bueno, eles se provaram perigosos quando o exército foi mandado pra destruir aquela comunidade, resistindo e derrotando várias incursões, pondo a "segurança pública" da época pra correr com o rabo entre as pernas e produzindo montes de mortos e feridos. Até que a última tentativa, em imensa superioridade numérica e de armamentos (até canhões foram usados), teve êxito, à custa de milhares de mortos. A resistência durou até o fim. Sobraram dois velhos, um homem e duas crianças, se bem me lembro. Canudos não representava perigo direto, mas oferecia um exemplo que os poderosos locais não suportavam, em sua ânsia de predomínio e usufruto, de controle e exploração. O que fariam se seus empregados, miseráveis, se juntassem ao grupo? Independência dos pobres assusta os ricos e os torna criminosos em seu ódio. Em sua mentalidade torta, é muito atrevimento dos pobres quererem ser independentes, autônomos, ao invés de servis, dóceis e prestadores de serviços a troco de migalhas. Esse é um dos terrores das elites, que fazem pose mas são dependentes dos pobres pra tudo.

No Assentamento Milton Santos as práticas cotidianas assustam os patrões locais. Ameaçam os padrões sociais vigentes, de acumulação de riqueza e poder para alguns e espoliação e exploração da maioria. São apenas 140 hectares, insignificantes para a usina. Uma mixaria de terra, perto dos sete mil hectares. Não é a terra o que lhes interessa, embora sempre some mais um pouco. A intenção é acabar com o "mau exemplo", dessa vez muito mais abrangente. Afinal, em 2006, quando foram assentadas as famílias, a terra estava esgotada pela contínua plantação de cana, envenenada com fertilizantes químicos e resíduos tóxicos da fumigação de venenos contra pragas e ervas daninhas, a água era poluída. Mas com muito trabalho, muito suor, esforço e sacrifício, conseguiu-se tornar a terra novamente produtiva, sem uso de químicas nocivas tanto ao meio ambiente quanto à saúde dos agricultores. Hoje essa terrinha produz mais de trezentas toneladas de alimentos por ano, consumidas na região metropolitana de Campinas e entorno, com doações para entidades de assistência (asilos, orfanatos, ...) e mantendo uma existência digna, sem fome ou miséria. Encravados no meio de latifúndio, contrastam com a miséria da população circundante, explorada pelos fazendeiros da área em seus canaviais, usinas, comércios e nos serviços da sua manutenção. Daí o ódio desses exploradores, usufrutuários da miséria e dependentes dela. Daí as manobras pra desfazer esse embrião de reforma agrária. Ricos não suportam independência de pobres, não suportam pobres que se esclarecem e entendem os porquês da miséria, desde a manipulação econômica e midiática das marionetes políticas.

O que está em jogo não é um pedaço de terra. É uma forma de vida, de resistência com base na cooperação, na solidariedade e no compartilhamento. Isso apavora os privilegiados e ameaça o sistema em que dominam e desfrutam esse poucos. Agricultura ecológica, livre de químicas nocivas, desagrada as multinacionais da transgenia e dos chamados defensivos agrícolas - que antes eram usados nas guerras químicas. O modo de vida comunitário desagrada os que exploram o trabalho dos outros. A cooperação ridiculariza a competição, torna a vida mais agradável, mais saudável e menos angustiante que o estilo de vida imposto pela força do mercado - leia-se o poder econômico dos mais ricos - e diminui a angústia de uma competição eterna criadora de derrotas no atacado, de vidas sem sentido e frustrações pessoais. A competição é usada para dividir, afastar uns dos outros, impedir a união e a cooperação. Cooperação gera autonomia, independência e dignidade, o que os "donos" do sistema social negam às multidões, usando tudo o que estiver ao seu alcance para acorrentar suas mentes e seus comportamentos. E são muitos os recursos.

O que move a tentativa de destruir o Assentamento Milton Santos é o medo. O medo que os ricos têm de pobres organizados, esclarecidos, solidários e insubmissos à sua exploração.


Vídeo com o professor Paulo Arantes:

Blogue da rapaziada: http://www.assentamentomiltonsantos.com.br/

Este mês de janeiro completa um ano do massacre, da barbárie, do crime de Pinheirinho (várias postagens neste blogue, com fartura de vídeos, de fotos, de detalhes). Pedro Rios, que na época gravou cenas do ataque e publicou com o título "eu queria matar a presidenta", junto com outros apoiadores do Assentamento Milton Santos iniciou uma greve de fome em frente à secretaria da presidência da república contra a expulsão dos agricultores das suas terras. Aí o vídeo: 
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=N7649GMv97s

"Por que ocupamos o Instituto Lula" - carta dos agricultores do Assentamento Milton Santos:

http://www.assentamentomiltonsantos.com.br/?p=40

Reportagem com mapa e detalhes do caso, no final da postagem, da agência de notícias Repórter Brasil, especializada em trabalho escravo, prostituição infantil e outras mazelas nacionais (e mundiais).

Casas Marcadas - evidência do desrespeito.

Sociedadezinha vergonhosa.

Não há outro termo. O frenesi da copa, que assanhou esse punhado de grandes empresários, enxovalha ainda mais a farsa democrática, cada vez mais descarada. A população mais pobre é tratada como papel higiênico, que se usa e joga fora. Mãos pobres plantam os alimentos desde sempre - e as favelas foram inchadas com a expulsão de camponeses das suas terras pelos interesses dos grandes fazendeiros, que tomavam as pequenas propriedades com infinitos recursos, todos espúrios, desde falsificação de documentos com a cumplicidade dos cartórios até a pura e simples expulsão a tiros - ou o assassinato -, passando por variedades de terrorismo. Mãos pobres fazem ruas e prédios, preparam alimentos, carregam caixas, transportam, limpam, lavam, consertam, desentopem, exploradas até o talo, dão lucros, servem, trabalham pra manter a sociedade funcionando.

Os profissionais da política (porque políticos somos todos, conscientes ou não) mentem, fingem, sorriem e juram lealdade à população que traem, em seu cotidiano dos gabinetes, atendendo aos ricos financiadores e enganando seus eleitores, sem pudor. Enganando o povo, já devidamente sabotado em instrução e informação, narcotizado por uma mídia criminosa, induzido ao consumo como valor social e acreditando na grande mentira de uma falsa democracia. Nunca houve democracia, o parlamento desde sua criação é um balcão de negócios para os mais ricos, os concentradores de renda exploradores do povo e ladrões das riquezas públicas. O jogo é sujo, nos gabinetes limpos, suntuosos e refrigerados. Se a pose é nobre, a conduta é de dar nojo. Os políticos profissionais demonstram clara e cotidianamente a quem servem.

As forças de segurança são impedidas de desenvolver qualquer tipo de consciência cidadã. São levadas a atacar a população em suas manifestações ou em suas casas, quando há algum interesse empresarial envolvido. Moral e consciência são reduzidas ao cumprimento de ordens, sejam quais forem. E os policiais que manifestarem qualquer incômodo de consciência são reprimidos, perseguidos, ultrajados, acusados de "fraqueza". Força moral não existe pros comandantes, só a força bruta. "Você não é pago pra pensar" é frase comum entre militares. Obediência cega, destruição da própria humanidade, com todos os problemas que isso causa nos corações e mentes de policiais honestos e bem intencionados.

O terrorismo da marcação de casas nas comunidades "juradas de morte" pelo poder público é mais um crime contra a população. Em sua arrogância, políticos desprezam o povo. Jogam pra mídia aliada, acatam seus patrões financiadores, usufruem dos favores empresariais sem constrangimento, aviões, iates, mansões, em troca dos seus serviços "público-privados".

Como se encaixar numa sociedade estruturada dessa forma? Pra mim é impossível. Recuso os valores vigentes e recrio meus próprios valores, a cada dia. As correntes da escravidão contemporânea são feitas com mentiras. E essas correntes têm força na medida em que acreditamos nelas. Elas se unem umas às outras, como elos de ferro. Quando se percebe o encadeamento das mentiras, quebram-se os elos e aí se pode pensar por conta própria. Estamos enganados, eis o princípio. As verdades não páram de aparecer, nos atos e nos acontecimentos cotidianos - é preciso ler a sociedade com olhos próprios.

Mudando a visão de mundo, muda-se o comportamento, muda-se o mundo, muda-se o sabor da vida.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O sentimento e a razão

O modelo de sociedade que nos serve de exemplo, a de consumo e competição, apresentada como democracia, é principalmente a dos Estados Unidos. Em deploráveis manifestações de subalternidade, a mídia privada, que nos domina muitos milhões de mentes, exalta aquela falsa democracia, escondendo seus podres que são conseqüência do modelo e afetam não só sua própria população, mas muitas populações do mundo - onde quer que os interesses das suas mega-empresas localizem riquezas.

O entusiasmo, a admiração e o espaço ocupado pela posse de Obama contrasta com o tratamento depreciativo e irônico das posses dos presidentes latinoamericanos que contestam esse modelo de sociedade e privilegiam os interesses de suas próprias populações em detrimento dos interesses econômicos, loucos pra sugar o sangue público. São esses interesses que a mídia representa, em todas as suas expressões - jornais, novelas, programas, comentários, formando visões de mundo distorcidas e comportamentos lucrativos e anestesiados. A mídia sabe escolher o momento e a direção de arreganhar os dentes ou de abanar o rabinho. Comportamento de capataz, cruel com os servidores e bajulador com os senhores.

Artigo de Altamiro Borges (http://altamiroborges.blogspot.com.br/2013/01/a-posse-de-obama-e-midia-colonizada.html, o Blog do Miro) retrata bem essa realidade.

Estamos diante da opção acreditar nas mentiras ou mudar o mundo - desacreditar as mentiras cotidianas é passo fundamental pra essa mudança, embora seja apenas um dos primeiros. Sem esse passo, a caminhada pode se desviar a qualquer momento. E esse é um passo interno. Quanto de valores nos foram impostos desde o inconciente? O quanto o nosso comportamento foi condicionado? O quanto de nossas idéias estão limitadas por esses valores e comportamentos? É preciso humildade, sinceridade e criatividade. Para reconhecer em nós a existência de inúmeros condicionamentos - em diversos graus, primários ou sutis -, tratar com eles e superá-los. Bobagem desprezar a importância da forma de nos relacionarmos com as pessoas e com o mundo e da nossa lapidação interna, pois é aí que se faz o mais forte alicerce pra mudanças sociais, comportamentais e todas as outras que compõem o ser humano.

Na minha opinião, é preciso destronar a razão arrogante e valorizar o sentimento nas próprias decisões. A razão deve ser usada como assessora do sentimento, para realizar suas determinações. Por que é que, com tanto desenvolvimento tecnológico, tanta evolução acadêmica, conhecimentos profundos em todos os campos, não se resolveu o problema da miséria, da ignorância, da exclusão e tanta barbárie em que vive enorme parcela da humanidade? Porque a razão foi comprada e posta a serviço de poucos e a esses não interessa acabar com o sistema que dominam. Ouvimos mentiras escandalosas, distorções criminosas, e o sentimento oprimido nos angustia.

O sentimento repudia a miséria e o sofrimento. Mas a razão faz parecer que é inevitável, uma lamentável fatalidade, escondendo suas causas óbvias, o controle do Estado, das comunicações, das mentalidades, dos comportamentos, das instituições pelos interesses econômicos, um punhado de podres de ricos. Pouco a pouco as mentiras aparecem, cada vez mais. Luzes se acendem, enxerga-se a realidade, caminha a humanidade. Virá o dia em que o sistema estará desvendado e superado, pelo andar da geopolítica mundial com cada vez mais focos de resistência, ainda aos trancos e barrancos, mas sem que as elites consigam conter - daí a gritaria histérica e raivosa da mídia corporativa, privada, comercial, vendida, mentirosa. E o entendimento dessa estrutura social desumana, injusta, perversa e suicida causará espanto "pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio", como na canção (Índio, de Caetano Veloso).

O mesmo Miro emenda com um artigo que mostra alguns dados sobre a realidade venezuelana e o trabalho sujo da mídia. Como esses meios de comunicação conseguem se manter incólumes, impunes em seus crimes contra as populações, é um mistério. Uma ponta do pesado véu que encobre este mistério pode ser levantada se observarmos os financiamentos das campanhas políticas e os comportamentos dos políticos financiados. Estabelecidas as ligações veremos a quem eles servem - seus financiadores - e de quem eles e seus financiadores se servem - do povo. Não só a massa mais pobre, mas as classes médias e mesmo o que se considera elite (a alta classe média, que não tem helicópteros nem grandes empresas), sendo apenas a parcela mais rica dos explorados, cuja remuneração farta se deve aos serviços especializados, são pessoas condenadas ao sobressalto eterno, ao medo da pobreza e da revolta dos pobres, da violência que a miséria alimenta e o proveito que empresários do tráfico e de outros crimes dão a esses deserdados da sociedade.

http://altamiroborges.blogspot.com.br/2013/01/a-venezuela-que-midia-esconde.html




quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Aldeia Maracanã, Casa do Índio, Museu do Índio – sua demolição será o símbolo do desrespeito, do desprezo empresarial, do genocídio físico e cultural dos povos originários.

A casa já existia, muito antes da construção do Maracanã


Corrupção explícita, programada e contumaz.

“Das 82 obras de mobilidade urbana, portos e aeroportos prometidas em 2010, por meio de um documento chamado matriz de responsabilidades, somente três permanecem com igual cronograma e orçamento. 21 empreendimentos foram retirados do compromisso, 25 tiveram o orçamento alterado e os demais 33 experimentaram ao menos mudança no prazo de conclusão. Em três anos, outras 28 obras de mobilidade urbana foram incluídas na previsão e somente sete delas chegaram a ser entregues até agora.”  (Estado de São Paulo, o Estadão)

Há alguns meses vi uma entrevista do Romário, ex-jogador de futebol e atual deputado federal, dizendo com todas as letras que as obras da copa, como de costume nas obras públicas, seriam superfaturadas e a maioria delas iria atrasar estrategicamente, porque ganhando caráter de urgência a fiscalização afrouxa, as licitações são dispensadas e se pode roubar muito mais do dinheiro público. E que a quantidade não era possível nem imaginar. É, dinheiro público, este que falta nos programas de erradicação da fome, da ignorância, da miséria e da exclusão, tão cotidianas quanto a corrupção na promiscuidade público-privada. Sou obrigado a concluir que acreditar em democracia nessa sociedade é ingenuidade, desinformação, estupidez ou mau caráter.

Os planos de demolição da Casa do Índio, antigo museu, atual Aldeia Maracanã, não são novos. Naquela casa morou uma filha de D. Pedro II, depois o marechal Rondon, criador do Serviço de Proteção ao Índio, e depois foi destinada à cultura indígena, da qual o marechal era o maior e mais engajado defensor, na época. Só isso seria o suficiente pro tombamento definitivo do imóvel como patrimônio histórico. Mas nada é definitivo pra ânsia de lucro dos "grandes" empresários, vampiros da sociedade. Pra eles, acostumados a controlar os fios do poder político, é natural usar a polícia pra remover os obstáculos aos seus interesses, aos lucros absurdos, sejam casas ou pessoas - às vezes casas com pessoas dentro -, sob pretextos descarados e mentirosos, com artimanhas sujas apoiadas pela mídia comercial privada.

Quando esses planos vieram à tona, começaram as articulações para a defesa da área – que é claramente de interesse público, apesar do privado. Próximo à data da varredura que seria feita pela polícia de choque, os jornais noticiam que o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural proibiu a demolição do prédio e a expulsão dos ocupantes. Mentira deslavada, cortina de fumaça na intenção de desmobilizar as pessoas que se dispunham a somar na resistência à barbárie dos poderes públicos constituídos por interesses privados. O tal conselho não tem poder pra proibir o ato sem antes passar pela aprovação ou veto do prefeito – que, obviamente, não aprovou. Artimanha óbvia que por sorte não deu resultado – a defesa continuou juntando mais e mais apoio, apesar dos esforços do poder público-privado e da mídia criminosa. Eles perderam a batalha que programaram pro dia 13 de janeiro. Era tanta gente, tanta câmera, tanto apoio que a batalha não ocorreu. 

Mas não se pense que perderam a guerra – eles mantêm suas armas, o controle do poder público, das armas institucionais da “segurança pública” (que, de tanto servir aos interesses privados e atacar populares que se manifestam contra os crimes do sistema, já não merece essa definição) e a aliança incondicional da mídia privada e seu avassalador poder de enganar a população.

Na esperança de acalmar os agressores, fumacinha ritual.

Tentando impedir a entrada de apoiadores, a polícia foi posta a cercar a casa.
"Ah, se não fossem essas câmeras..."
O vampiresco interesse empresarial recua, rosnando seu ódio e frustração, e trata de agir no escuro. Equipes de advogados manobram as leis, em malabarismos jurídicos, buscando formas de “legitimar” ações velhas conhecidas, para atender suas ambições desumanas acostumadas aos privilégios indevidos, ao exercício nos bastidores de manipular os poderes públicos, os dinheiros públicos e a própria população. Aguardem-se novas ações no mesmo sentido, provavelmente antes mesmo de baixar a poeira do episódio. A ganância e a prepotência dos vampiros não têm limites.

Ninguém está seguro. Tudo o que estiver no caminho do lucro está ameaçado, exceção feita a esse punhado de parasitas que dominam os poderes públicos, enquanto o povo é mantido ignorante, desinformado e narcotizado pela cultura do consumo, da competição e do egoísmo. Aliás, como de costume.

Atualmente, toma-se consciência como nunca, devido aos furos no controle das informações – antes as únicas fontes de informação passavam pela censura empresarial –, principalmente pela internet. O processo é lento, longo, palmilhado pouco a pouco, mas de forma constante e consistente. Daí a importância fundamental da luta pela pulverização das comunicações, da liberação do espaço público que é o espectro magnético por onde transitam rádios e televisões, atualmente sob controle das grandes empresas que dominam não só esse espaço como os governantes, legisladores e instituições falsamente democráticas.

A Aldeia Maracanã continua sob ameaça. O poder público, sob comando dos financiadores das campanhas, procura formas jurídicas pra justificar os crimes que pretende cometer. Como sempre, criminalizando as vítimas.
  
 “Porque os índios já disseram que vão resistir com arco e flecha contra o armamento israelense da polícia. É possível que, num gesto filantrópico, o governo do estado até dê uma ajuda de custo para a compra de novas residências, individuais e de madeira barata, com forro de cetim roxo por dentro, para os índios desafortunados no confronto com a PM.” (Bajonas Teixeira de Brito Júnior, no mesmo artigo)

http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/outros-destaques/teoria-das-coincidencias-matriz-br-e-indios-no-rj/

Governo estadual agora empurra com a barriga. Parecer de desembargador dá prazo de 10 dias pro governo federal se manifestar. Caso nada ocorra, fica tudo como está, a ameaça permanece. A proposta do governo estadual ofende a inteligência. Oferece para os povos indígenas um galpão dentro de um presídio em processo de desativamento, que ainda conta com três milhares de presos à espera de serem transferidos, para o Conselho Estadual de Direitos Indígenas. As universidades públicas, os hospitais e as escolas enfrentam um estado de precariedade vergonhoso. Imagine um presídio, ainda mais sendo desativado. O governador pretende colocar os índios nesse imóvel semi-abandonado e esquecer da existência deles. Taí a reportagem:

http://pelamoradia.wordpress.com/2013/01/17/decisao-do-tribunal-regional-federal-suspende-demolicao-da-aldeia-maracana-rj/

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Manifestação maciça da população em apoio ao governo venezuelano, para a mídia, é golpe de Estado. O seqüestro do presidente, em 2002, sim, era a "volta da democracia". Mas o povo derrubou essa "democracia", botou as elites golpistas pra correr e trouxe o presidente eleito de volta. E agora o apóia, mesmo com a mídia em histeria convulsiva.

Venezolanos se concentraron en los alrededores de Miraflores para apoyar al presidente Hugo Chávez. FOTO: Alberto Corro

Nas manifestações políticas do Brasil, os fotógrafos dos movimentos sociais precisam buscar ângulos que não deixem aparecer a pouca quantidade de manifestantes, os vazios da suposta multidão, que revelariam a incapacidade de mobilização social dos tais movimentos - que ainda não aprenderam a falar a língua da população, cegos em seu fanatismo ideológico que os divide em pequenos grupos inimigos e praticamente estéreis. As "conquistas das lutas populares" tão ao gosto destes ceguetas, como a jornada de oito horas de trabalho, o 13º, as férias remuneradas e outras, foram todas obtidas durante uma ditadura, a de Vargas, no objetivo de cooptar a massa trabalhadora. Objetivo alcançado com sucesso, haja visto a eleição de Vargas anos depois, apesar da pesada campanha da parte mais reacionária das elites brasileiras. Mas os crentes da ideologia fazem parecer que são frutos da "sua" luta (um ponto comum entre esses grupelhos é se arrogarem a representação dos "legítimos interesses" da população como um todo. Pretendem-se guias das massas, conhecedores das verdades universais e dos caminhos da revolução, acusando os que não lhes comungam os dogmas de traidores do povo, de vendidos, de pelegos ou de demônios, o que dá tudo no mesmo. Sua arrogância impede a visão da sua própria esterilidade social - sempre digo que, com seu linguajar e seus preconceitos, a única maneira desses caras conduzirem as massas é ir entregar pizzas, pães, bolos e tortas).

Poucas manifestações puderam ser fotografadas de longe, como as das diretas já, densas e massivas - já com meio apoio empresarial, que pressionava pela retirada dos militares do governo. A sociedade já estava sob controle do poder econômico, As forças armadas já tinham cumprido sua função e começavam a atrapalhar os grandes lucros das multinacionais, com o nacionalismo de alguns setores militares e as trapalhadas que a repressão burra estava fazendo. A escola pública já estava destruída, as comunicações dominadas, o povo ignorantizado, desinformado e conformado havia algumas gerações, os focos de resistência dizimados. Então, saíram os militares e entraram as marionetes da falsa democracia. Não entendo pessoas instruídas e informadas falando em "redemocratização", quando o que me parece óbvio é que a ditadura apenas colocou a máscara de democracia e tirou a cara feroz dos militares, por conveniência dos poderes reais - muito acima dos institucionais. A ditadura continua, muito pior, aliás, porque travestida de democracia reconhecida até mesmo pela mais ferrenha oposição institucionalizada, que colabora, talvez inconscientemente, com a construção do cenário que simula essa falsa democracia.

As manifestações de ontem, na Venezuela, levam ao desespero e à mais aberrante histeria as elites locais, defensoras dos interesses mega empresariais, sobretudo os estrangeiros que as sustentam em seus privilégios como pagamento pelos seus serviços no saque das riquezas naturais, do patrimônio público e na exploração do povo. Fotografias puderam ser tiradas dos altos dos prédios, revelando a dimensão dessa movimentação que levou milhões a Caracas, de todas as partes do país e do mundo, aumentando o ódio explícito da mídia defensora dos mega-exploradores multinacionais.

Venezolanos se concentraron en los alrededores de Miraflores para apoyar al presidente Hugo Chávez. FOTO: AFP

Eu estava no bar aqui em frente, ontem, e assisti, estarrecido, à fala do famoso ipanemense da mídia, afirmando mentiras absurdas, com ódio incontido, contra toda a movimentação latinoamericana em favor da revolução bolivariana que trata de resgatar o Estado para sua própria população. Qualquer pessoa que busque informações além da mídia percebe as incríveis distorções e falcatruas, os arghumentos malabaristas e as mentiras explícitas daquele verme elitista. Ele não fala para esses poucos e não tem pudor diante dos que sabem. É muito bem pago pra formar opinião da massa sabotada em instrução e informação, sem condições de consciência pra se defender dessas mentiras, e da classe média anestesiada, que precisa justificar sua alienação e seu consumismo predatório com esses ataques a qualquer tentativa de diminuir os abismos sociais que transformam a sociedade nesse inferno em que vivemos, exceto nas bolhas privilegiadas, embora estas precisem se armar de defesas contra a barbárie, vítimas preferenciais da criminalidade oriunda das situações de miséria e ignorância provocadas pela ditadura financeira.

Venezolanos se concentraron en los alrededores de Miraflores para apoyar al presidente Hugo Chávez. FOTO:@tmaniglia

Na sua crônica ele minimiza a massa apoiadora do governo venezuelano, hipertrofia uma oposição elitista e desmoralizada, acusa o chanceler brasileiro de ir a Cuba "receber as ordens dos irmãos Castro", denuncia ridiculamente um golpe na Venezuela - um absurdo jurídico que ficará, como sempre, impune - e acena dramaticamente com o fim do mundo, "estamos perdidos", o que se aplica, espero, ao predomínio das elites sobre as populações da América Latina, tão sacrificadas, saqueadas, massacradas, espoliadas e exploradas durante séculos de colonização institucional, política e econômica. Fácil de entender, difícil não se revoltar com o descaramento da mídia e seus porta-vozes sem caráter. Não há o menor compromisso com a verdade, apenas com os interesses empresariais mais desumanos, mais perversos, mais covardes e criminosos. Sem o menor constrangimento, a aberração midiática fantasiada de comentarista afirma que há 60 mil guerrilheiros cubanos na Venezuela prontos pra atacar a oposição. Uma oposição anêmica, caricata, ridícula, sem força nem expressão, derrotada repetidamente e em vias de extinção, que se destrói por si mesma e está desmascarada em seu país - tratado até a chegada de Chávez à presidência como sua propriedade privada. O que Cuba tem na Venezuela são professores e médicos, cerca de 40 mil, com o que o governo fez chegar à massa da população excluída o ensino e a medicina - e condições de vida - que até então haviam sido negados. Essa é a força do governo venezuelano e da revolução bolivariana. A tomada de consciência de grandes parcelas da população que perceberam qual é o papel do Estado na sociedade e porque este não cumpria suas obrigações constitucionais.

Venezolanos se concentraron en los alrededores de Miraflores para apoyar al presidente Hugo Chávez. FOTO: Reuters


Nota da embaixada da Venezuela no Brasil:

"Além de desrespeitar os venezuelanos, povo irmão do Brasil, e de proferir acusações sem base nos fatos reais, o comentário de Arnaldo Jabor nesta quinta-feira, 10 de janeiro, no Jornal da Globo, demonstra total desconhecimento sobre a realidade de nosso país.

Existe hoje na Venezuela, graças à decisão de um povo que escolheu ser soberano, um sistema político democrático participativo com amplo respaldo popular, comprovado pela alta participação da população toda vez que é convocada a votar em candidatos a governantes ou a decidir sobre temas importantes para o país. Desde que Hugo Chávez chegou ao poder, o governo já se submeteu a 16 processos democráticos de consulta popular – entre referendos, eleições ou plebiscitos.

Não nos parece ignorante ou despolitizado um povo que opta por dar continuidade a um projeto político que diminuiu a pobreza extrema pela metade, erradicou o analfabetismo, democratizou o acesso aos meios de comunicação e que combina crescimento econômico com distribuição de renda. Esse povo consciente de seus direitos não se deixa manipular pelas mentiras veiculadas por um setor da mídia corporativa – essa que circula livremente também na Venezuela.

Considerando o alto grau de organização e conscientização da população venezuelana, não são nada menos do que absurdas as acusações feitas por Jabor da existência de um aparato repressor contra o livre pensamento. Na Venezuela, civis e militares caminham juntos no objetivo de garantir a defesa, a segurança e o desenvolvimento da nação. É importante lembrar que se trata do mesmo comentarista que em 11 de abril de 2002, quando a Venezuela sofreu um golpe de Estado que sequestrou seu presidente durante 48 horas, saudou e comemorou este ato antidemocrático, durante comentário feito na mesma emissora, a Rede Globo."

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Abujamra entrevista Mário Sérgio Cortella

Elites do país são predatórias e promovem desde sua existência um pedagocídio, um assassinato permanente das condições do ensino. Quarenta e três milhões de analfabetos totais ou funcionais, eu acho que tá subfaturado. Vi em algum lugar que são 70% da população, o que bate com o que vejo por aí. As elites são minorias instaladas no topo dos mercados financeiros, na propriedade das mega-empresas e se estendem por grupos políticos, com o apoio de uma classe média alienada, entorpecida pela mídia e anestesiada em sua consciência.

Três milhões de crianças entre 7 e 14 anos não freqüentam nem as precárias escolas públicas. Um organismo da ONU declara haver no Brasil 50 milhões de indigentes - pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza. Considerando que os analfabetos totais (18 milhões) e funcionais (25 milhões) somam 43 milhões e estão em grande parte na faixa pobre, há um montão de indigentes leitores. As contas não batem, mas a tragédia é a mesma. Domínio por poucos, seqüestro do Estado e barbárie social. Os bem intencionados (vamos supor) como Paulo Ernesto Serpa precisam ver a realidade distorcida pra continuarem a acreditar no seu trabalho.

"Qualidade sem quantidade não é qualidade, é privilégio... Qualidade social exige quantidade total."




terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Crônica da pré-estrada


Filho de coronel

Setembro de 1980. Bairro de Laranjeiras, ao norte de Vitória, Espírito Santo. O vinho tinha acabado, Adney e eu saímos pra procurar mais. Era noite alta, talvez madrugada, a rua estava deserta. Encontramos um bar aberto numa rua escura, iluminado por luz fraca, uma mesa na calçada, dois pinguços no balcão. Resolvemos tomar uma cerveja antes de levar o vinho, sentamos ali fora. Tomávamos a segunda quando três vultos dobram a esquina, envoltos na escuridão, e se aproximam. Dois estão de farda da polícia militar, um está em roupas civis, só percebemos quando eles chegaram perto, porque os peemes estavam sem os bonés e no escuro os uniformes não apareciam. Eles vinham pelo meio da rua, nos olhando ostensivamente e andando em direção à porta do bar. Nós tínhamos os olhos vermelhos, pálpebras caídas, calças arregaçadas, descalços, túnicas coloridas, Adney trazia uma faixa na cabeça, embora os cabelos encaracolados e pretos não fossem tão compridos – os meus eram mais compridos, até perto dos ombros.

O paisano, que parecia ser o chefe, parou frente a nós, cara zangada, olhou cada um nos olhos, passeou os olhos pelas nossas figuras, dos pés às cabeças, e concluiu em voz baixa mas clara, “esses caras têm maconha”. E levantou a voz, agressivamente, “documento dos dois!” Virou pros soldados, “dá uma geral nesses caras!”

Começaram pelo Adney que, nervoso, começou a falar sem parar, “que isso, pelamordedeus, sou funcionário do governo” e era mesmo, funcionário do Banco do Brasil, apesar do aspecto e das circunstâncias. Enquanto os caras ignoravam o falatório e desdobravam as pernas das calças dele, procurando uma bagana ou qualquer coisa, ele explicava que estávamos em casa de amigos, saíramos pra comprar um vinho porque acabou, ele nunca tinha sido preso, era um cidadão de bem e tal e coisa, e o delegado (um dos soldados chamou assim) olhava os documentos. Quando viu minha carteira expedida pelo exército, franziu o cenho e prestou atenção. Abaixo do meu nome havia o nome e o posto do meu pai. “Cê é filho de coronel?”, perguntou, me olhando. Os soldados tomaram um choque, as coisas dos bolsos do meu amigo já estavam em cima da mesa, chaves, moedas, notas amarfanhadas, a geral parou na mesma hora, eu não havia dito uma única palavra, confirmei com a cabeça. De repente o delegado pareceu ouvir as falas do Adney, que tinha se calado com a mudança de atitude dos policiais. E passou a acalmá-lo, “não precisa se preocupar, isso aqui é uma ação de rotina, pra sua segurança mesmo”, os soldados parados, cada um olhando pra um lado diferente, pareciam não saber onde meter as mãos. A cena ficou engraçada, contive um sorriso, o chefe continuava, “tá tudo certo, já vimos que vocês são gente boa, podem ficar sossegados, qualquer coisa nós estamos por aí...” Dei boa noite e desejei bom serviço, até pra deixar sair o sorriso que eu tinha por dentro. Pra não dizer que não falei nada. 

E eles foram embora. Nós terminamos a cerveja, pegamos as garrafas de vinho e voltamos pra esbórnia. Com uma historinha pra contar e rir com a rapaziada, ainda mais com o apavoramento do Adney e a metralhadora de palavras. Inúteis, todas. O que valeu foi a carteirinha, que perdi com todos os documentos em Itabuna, dois anos depois, pra poder ter experiências mais... digamos... profundas com o sistema de segurança pública. Mas isso já são outras histórias.

Eduardo Marinho - 08.01.13

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.