quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Celestina em cirurgia outra vez - preparação pra estrada

Chegando de São Paulo, o motor já estava com barulho diferente. A potência havia caído muito, até na subida do vão central da ponte Rio-Niterói pedia a terceira, perdendo velocidade. O óleo voltava a vazar, pouco a pouco e aumentando, os tubos dos tuchos melavam, primeiro dois da esquerda, depois os quatro e dois da direita, por fim todos estavam sujando com óleo enquanto o nível, claro, diminuía na vareta. Levei no Wilson, aqui na rua, mecânico que sempre considerei bom, por vários motivos - e que eu evitava, por um único motivo, ele cobra caro - e ele, depois de examinar, disse pra levar numa retífica de um conhecido dele, onde tinham equipamentos pra retirar e examinar o motor, o que ali na oficina dele demoraria demais e ele teria que cobrar pela mão de obra. Aquilo me deixou com a pulga atrás da orelha, mas pensei que não era possível, o motor só tinha rodado na kombi uns seiscentos quilômetros. Ele falava dos cabeçotes e prováveis problemas internos, eu preferia acreditar que ele tava enganado. Mas a necessidade de acelerar por causa da falta de potência fazia o barulho das explosões nos cilindros escapar pro lado de fora - sintoma de vazamento nos cabeçotes, já que o sistema de escapamento estava bem ajustadinho.

Fui regularizar os doc no detrar, fazer a vistoria, e cada vez o motor exigia mais aceleração, perdia mais embalo na subida, esquentava a ponto de precisar parar pra esfriar e andar com a tampa aberta pra esquentar menos. Eu tava ficando já apreensivo - como viajar desse jeito?

Aí, por um desses mistérios da vida, apareceu o Claudião, como se diz, "do nada". Fotógrafo e metido com câmeras, vídeos e toda essa parafernália pra mim hermética, entrou na sintonia e criamos a intenção de gravar as coisas pra divulgar idéias e visões de mundo e da vida. Criado entre fuscas e motores a ar, tinha muito mais noção do que eu dessas mecânicas - eu tô com essa kombi há menos de dois anos, antes nunca tinha tratado de motor algum. Viu o problema e se meteu por inteiro, no bom sentido. E acabou nos levando ao mecânico de família com quem, como um médico de família, se relacionava há muitos anos. Ele também achava que era caso de retífica.

O Amauri e o Ricardo apenas confirmaram, claro, depois de abrir o coração da kombi. O Cláudio chama o motor de alma da Celestina, mas eu vejo ali o coração. A alma formamos nós, dentro dela, na intenção de levar e espalhar reflexões, pensamentos, questões, desmascarando as mentiras sociais em que estamos afundados nesta sociedade falcatrua, criadora de miséria, exclusão, ilusões, discórdias, conflitos e separações. Na humildade o Amauri explica o que encontrou por dentro do motor e o que precisa ser feito pra ficar "no jeito".

Aí se vê apenas o planejamento da cirurgia, com detalhes em cada problema encontrado, explicando o porquê do aquecimento e de todos os problemas que estavam se apresentando, a trinca no cabeçote, o arredondamento dos tuchos, as folgas nos eixos, a falta dos retentores...

Só ficou faltando a pedrada do orçamento. De qualquer forma, tenho que expor mais um ou dois fins de semana em Santa, pra completar o que suponho que será a grana do conserto geral. Já tem guardada, mas temo que não seja o suficiente, pelo que minha ignorância viu nesse vídeo.

Sinto que depois dessa, finalmente, Celestina vai estar com boa saúde pra encarar os milhares de quilômetros que tem pela frente, cumprindo sua função de levar reflexões por aí, a começar pela viagem mais amorosa, ao Vale do Capão.



Senti errado. Ainda falta. O que pareceu que foi, não era.

Hoje, 25 de novembro, o motor tá condenado ao lixo, não se aproveita nem pra retífica. Agora é correria pra arrumar outro, do zero outra vez. Muito trampo pra levantar de novo as condições de movimento da kombi. Mas não tem problema, trampo taí pra isso mesmo. Só adia todo o planejado pra levantar esse final de ano, projetor, caixa de som, bagageiro, lanternagem, arrumação da oficina de trabalho, preparação pra melhorar o esquema da produção dos trabalhos... tudo adiado pra quando der. Prioridade a Celestina, la kombi.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Pequeno panorama



Na época do Fernando Henrique o congresso foi comprado com grana do Citygroup pra passar a reeleição - um desses remendos constitucionais pra "legalizar" as estratégias do real poder - através do banqueiro Daniel Dantas, de acordo com vários artigos fora da mídia porca, obviamente - e livros, como "A melhor democracia que o dinheiro pode comprar" (a partir da segunda edição, quando foi incluído o "Capítulo Brasileiro"), de Greg Palast e depois, "Privataria Tucana", de Amaury Ribeiro Júnior -, sob o compromisso de entregar empresas públicas lucrativas a preço de banana pra corporações internacionais. FHC só não privatizou empresas estatais desprezadas pelos parasitas podres de ricos e as que foram defendidas pelos trabalhadores organizados, como a Petrobrás e o Banco do Brasil, que passaram a ser sistematicamente sabotadas pelo próprio governo.

Lembro do final melancólico desse governo traíra, eu passava pela ponte Rio-Niterói e via o porto vazio, poucos contêineres, quase nenhum navio atracado, a crise era enorme e a mídia cumpria seu papel enganador, todo dia, criminosamente. Os movimentos sociais estavam na maior atividade, o MST nunca tinha conseguido tantos assentamentos e desapropriações no caminho da reforma agrária, necessidade nacional evitada a todo custo pela elite latifundiária. O punhado de vampiros precisava de um governo que acalmasse as movimentações coletivas e o torneiro mecânico vinha bem a calhar.

Lula já havia sido devidamente pasteurizado pelas três derrotas nas candidaturas à presidência, entendido que se não compusesse com os banqueiros nacionais e internacionais, se não se mostrasse "amigo" dos interesses mega-empresariais, não alcançaria seu sonho já transformado em projeto pessoal - afinal, começar a vida como vendedor de amendoim e chegar à presidência da república não é uma história comum. Aí surgiu o "Lulinha paz e amor", catequizado e adestrado ao serviço dos mega-sanguessugas da sociedade humana, pronto pra acalmar os movimentos sociais. E foi o que se viu. Num contraste brutal, nenhum assentamento, nenhuma desapropriação foi feita e os movimentos ficaram mansinhos, esperando o que o "colega" na presidência iria fazer.

A parasitagem comeu solta, enquanto os ocupantes do chamado "poder público" aproveitavam seus mínimos espaços de manobra pra estabelecer "programas sociais", atirando migalhas às multidões sabotadas em seus direitos constitucionais - jamais lhes seria permitido políticas de Estado que reparassem e compensassem tantos crimes sociais. Afinal, o "poder público" nunca foi público. Esses programas migalheiros eram tolerados com certa relutância, com ironias na mídia, na expectativa de que não dariam resultados significativos, pelas elites servidas por esse governo estratégico, como um efeito colateral desagradável.

Com o tempo, foi se percebendo o que quem não tem nada é capaz de fazer com migalhas. Foi se percebendo que muitos dos "egressos" da miséria e da ignorância, ao contrário do que se esperava, não "esqueciam" seu passado, nem abandonavam os demais periféricos. Pequenas e frágeis pontes, antes inexistentes, começaram a aparecer entre periferias e academias, quase despercebidas, "ignoradas" pela mídia dominante, mas observadas e monitoradas pelos poderes reais, acima e por trás da farsa política, com apreensão. É preciso manter a ignorância dos explorados. O nascimento e crescimento de instrução e informação periféricas é apavorante e intolerável ao punhado que depende da exploração pra manter seus luxos, patrimônios e poderes sobre a sociedade. O terror das elites é a instrução, a informação, a consciência e a união dos "de baixo". O aparato midiático, em conjunto com a máquina estatal - apodrecida pela corrupção generalizada que há séculos domina o teatro macabro das marionetes governamentais, sejam executivas, legislativas ou judiciárias - foi manobrado pra sujar a imagem desses "governos" diante da população ignorantizada e desinformada. Difamações, escândalos fabricados, denúncias estratégicas localizadas e cênicas, tudo foi feito, sem sucesso suficiente pra impedir a eleição e reeleição da guerrilheira.

Mas Dilma, sem o jogo de cintura, o traquejo e a vaselina do seu padrinho, não foi capaz de fazer frente às artimanhas do jogo pesado. A presença, ainda que mínima, de pobres nas universidades e nos aeroportos, as redes de informação periféricas - embrionárias - se desenvolvendo, se ligando, aterrorizavam e enfureciam a elite escravista, exploradora, arrogante e perversa. A mídia - sempre ela - abriu espaço e estimulou movimentos de rejeição às políticas migalheiras que diminuíam os índices de miséria, de fome e abandono de parte dos excluídos. Ao mesmo tempo se manobrava dos bastidores das instituições públicas, dos três poderes. As classes médias foram a massa de manobra perfeita pra angariar apoio na massa ignorante, pouco, mas suficiente pra, com os holofotes dos "grandes meios de comunicação", criar a imagem de rejeição que sustentaria as manobras criminosas - sobretudo no legislativo e no judiciário - direcionadas a uma troca de marionetes que se mostrava impossível nas urnas, mesmo com toda a armação controladora de eleições.

As corporações estrangeiras faziam seus movimentos, com o acesso livre que têm ao território e às instituições brasileiras. Só pra dar um "pequeno" exemplo, o presidente do Banco Central, base das políticas econômicas do país, é indicado por banqueiros mundiais e vem de altos cargos do sistema financeiro internacional, fonte da vampiragem mundial. Por isso as políticas econômicas estão sempre a serviço dos interesses estrangeiros, contra a população e contra o trabalho de harmonização social tão evidentemente necessário. O império das corporações transferiu a sua embaixadora especializada em golpes institucionais - passou o tempo dos golpes armados, militares e explícitos - ao Brasil, pra articular aqui o que ela articulou em Honduras -  onde se derrubou Manoel Zelaya - e no Paraguai - onde Lugo foi impitimado como a Dilma, por um congresso corrupto e raivoso contra políticas sociais. As elites traíras de dentro da política institucional estavam indóceis, rugindo e rosnando de ódio contra o atiramento de migalhas, ainda que mínimas, à população mais empobrecida. Corruptos históricos gritavam contra a corrupção "do governo", como se a corrupção não fizesse parte estrutural da sociedade como um todo, desde a monarquia.

Os contrastes eram enormes. Enquanto se berrava "crise!" em todo canto, eu nunca tinha visto tanto movimento no porto, verdadeiros prédios de contêineres lotavam os pátios, os atracadouros cheios e navios esperando estacionados pelo espaço da Baía de Guanabara. Na semana anterior à queda da Dilma, a alta do dólar era uma desgraça em todos os comentários econômicos da mídia. Na semana seguinte a mesma alta passou a ser ótima, um estímulo ao turismo. Descaramento pleno. A palavra "crise" desapareceu como num passe de mágica. E a corrupção profissa das marionetes traíras se instalou nos cargos "públicos" de comando estatal. O quadro governamental se tornou tenebroso, com todo o apoio e satisfação da mídia - a porta-voz dos interesses empresariais desumanos.

As chamadas esquerdas, incapazes de se unir em suas divergências teóricas, perdem sempre a oportunidade de esclarecer a população, em sua arrogância induzida de superioridades ilusórias, de cima dos seus pedestais de vidro e com seu linguajar construído como uma cerca de arame farpado que impede o acesso ao entendimento da maioria, sabotada em instrução escolar. Não se misturam com a população e temem as áreas de exclusão, ao mesmo tempo em que se iludem com a idéia de "conduzir", de "liderar", de "formar quadros" - lideranças controláveis - ao invés de servir as vítimas dos crimes sociais cotidianos há incontáveis gerações, com seus conhecimentos e informações. E aprendendo, por sua vez, a sabedoria dos que se desenvolvem na dificuldade, a capacidade de superação ímpar dos sabotados, dos explorados, dos excluídos, ganhando humildade e respeito no desenvolvimento da sua própria humanidade. E parar com essa história de "ajudar os necessitados", "ensinar aos ignorantes", "conduzir os explorados à sua libertação", servir as vítimas de crimes sociais dos quais não se foi vítima. Em vez de caridade soberba e humilhante, solidariedade plena e atuante. O sentimento de superioridade benevolente nasce dos próprios condicionamentos e afasta as pessoas, é preciso o sentimento de igualdade e serviço.

Não dá pra contar com ainstituições  acadêmicas, também infiltradas pelos poderes econômicos e cooptadas pela mentalidade empresarista, a não ser exceções pessoais que conseguem não se contaminar com os condicionamentos acadêmicos de superioridade social, que conseguem manter a humildade e espírito de serviço, que reconhecem nos "de baixo" a força maior da sociedade toda, a base de toda existência, de tudo o que funciona, privado ou público. Essas exceções precisam somar com os periféricos - há exceções também nas periferias, que a duras penas se instruem e se informam, com quem formar e trabalhar no sentido do esclarecimento, na contramão da falsa informação da mídia privada - aproveitando as enormes contradições entre o que é apresentado nas telas de tevê, nas rádios e nos jornais e a realidade inegável à nossa volta.

A força da base social precisa ser percebida por essa mesma base, mantida inconsciente, desinstruída, roubada em seus direitos constitucionais, fundamentais, humanos, por esta armação social primitiva, covarde, escravista, mantida pelos mega-parasitas. Esta maioria possui a maior capacidade de superação de todas as classes, é a parte mais forte da sociedade, tanto que lhe serve de alicerce, construindo, operando e financiando o Estado como um todo, com os impostos. Por isso mesmo é cuidadosamente impedida de se desenvolver humanamente, induzida a sentimentos de inferioridade e impotência que paralisam tanto a ação libertadora quanto a consciência de sua própria força. E é esta a função de quem teve acesso à instrução e informação que são direitos roubados de quem não as tem. Este é o serviço e a obrigação moral, levar estes direitos sem a indução acadêmica da superioridade, com o espírito de quem serve e não de quem ensina. Os que se põem nos pedestais de vidro perdem o contato com a realidade e esterilizam suas ações e intenções. Vaidades, disputas e arrogâncias são induções estratégicas, obstáculos à verdadeira conscientização - que é a maior necessidade no caminho de algum equilíbrio social. Se não se trabalhar internamente nos seus próprios condicionamentos, não tem trabalho coletivo que se enraíze e produza resultados sólidos.

Respeito é bom, é escasso, mas nóis gosta. Sem respeito não se consegue confiança. E sem confiança qualquer relacionamento é manco e precário. O trabalho interno, individual e íntimo, é fundamental na lida por mudanças sociais na direção de uma sociedade menos injusta. A humildade é uma necessidade neste sentido e é exatamente por isso que os egos são inflados entre os "instruídos". Os poucos que conseguem se livrar das amarras da falsa superioridade são valiosos. Mas ainda são muito poucos, embora contaminantes e em expansão, embora lenta.

Caminhamos.

observar e absorver

Aqui procuramos causar reflexão.