quinta-feira, 1 de junho de 2017

O fazendeiro de Linhares e o massacre de Pau Darco


Mais um massacre, mais uma história na barbárie rural que sempre houve, desde a chegada dos europeus. Eu estava em viagem, a vida tomada, quando soube do que aconteceu em Pau Darco, no Pará, um dos estados que conta mais mortos entre camponeses e indígenas, sempre em nome de interesses econômicos, madeira, criação de gado, monoculturas, a grana sempre valendo mais que a vida, característica do modelo de sociedade em que vivemos, ainda com muito pra evoluir. A harmonia social tem custado muitas e muitas vidas, sobretudo com a invasão e o domínio europeus em todos os continentes, impondo com armas uma civilização que nunca foi chamada pelos povos.

Lembro de uma vez, em Linhares, já com a mãe dos meus filhos mas ainda sem filho nenhum, passávamos a caminho da Bahia e paramos num puteiro pra dormir. Já sabíamos que nessas casas encontrávamos sempre uma boa solidariedade, vendíamos nossas pulseirinhas ainda toscas, arrumávamos o que comer barato ou mesmo de graça e dormíamos da mesma forma. Entramos, vendemos, conversamos, comemos e bebemos, quando chegou um fazendeiro conhecido, freqüentador, falando alto e centralizando as atenções. As meninas o tratavam com toda deferência - esse aí gasta muito quando vem - e ele parecia em casa. Nos olhou com curiosidade - éramos de fora e estávamos de passagem - e puxou conversa. Logo o papo corria solto e ele demonstrou uma grande simpatia por nós. Chamou pra jantar e nos levou a um restaurante chique, do outro lado da cidade. Coisa rara, fomos comer comida cara. Entre piadas e relatos - que eu ouvia atento - ele mencionou uns "vagabundos" que tinham "invadido" uma área esquecida e distante das suas terras, tão distante que quando ele ficou sabendo já estavam roçando e fazendo hortas. Um funcionário foi quem trouxe a notícia e ele resolveu o assunto a bala, como é características dos fazendeiros ricos, pelo que pude ver nos territórios onde andei. Era um cara grande, peludo, meio ruivo, e parecia ter gostado muito de nós. Falava alto e contava histórias, eu estava na época das pesquisas antropológicas de rua, a partir de um ponto de vista que nunca vivera, o de quem não tem nada. Não julgava, apenas ouvia e guardava minha opinião ainda em formação, sem conclusões definitivas.

Numa certa altura do jantar, ele viu um camburão da polícia local passando, acenou gritando e a viatura parou. Ele saiu da mesa e foi até eles, mandou os soldados descerem - pra meu espanto, desceram todos - e me chamou, "vem cá, Eduardo, agora cê vai dirigir camburão". Obviamente eu me recusei, na repulsa natural de quem se via hostilizado por aquela instituição cotidianamente, olhado com desconfiança, tratado com agressividade e tomando geral com freqüência. Ele insistiu, diante dos olhares contrafeitos dos policiais, que me viram cabeludo, de barba rala, cara de hippie, típico "inimigo", embora pacífico e desarmado. Pro alívio deles, mantive o pé dizendo, "aí eu só entro contra a vontade, e é lá atrás". Mas fiquei intrigado com a intimidade, com o poder que um civil tinha sobre os militares. Era o primeiro esboço da promiscuidade entre os poderes econômico e público. Ao longo do tempo, pude "apreciar" esse conluio, essa cumplicidade, muitas e muitas vezes.

A brutalidade do cara, embora a simpatia por nós, já estava me dando uma certa repulsa pessoal, a agressividade era evidente mesmo no afeto demonstrado por nós. Um afeto que eu intuía muito próximo de se transformar em raiva, por qualquer motivo que o desagradasse. Ele nos deixou de volta na casa das meninas, mandando cuidar bem da gente e prometendo voltar no dia seguinte, pra nos levar a uma das suas fazendas. De manhã cedo, tratamos de pegar a estrada e partir antes que ele chegasse.

Lembrei desse encontro, depois do massacre no Pará, na percepção de que os donos de terras sempre contaram com violência armada, com jagunços, "seguranças", sempre expulsando os camponeses ou os povos originários, seja das "suas" terras (nem sempre legais), seja de terras cobiçadas. E isso se aplica a empresas também, a Aracruz Celulose (hoje Fibria) também teve, segundo a mídia, a resistência dos indígenas quando instalou sua fábrica na Barra do Riacho, Espírito Santo. Na televisão saía que os "índios" tentavam impedir o desenvolvimento do estado. Depois eu soube que houveram vários massacres e, por fim, os indígenas foram dispersados a tiros. Os remanescentes que conseguiram fugir a tempo se reuniram sob a tutela da Funai e, vinte anos depois, constituídos em associação, conseguiram o "direito" de ocupar uma pequena área do que era seu e foi tomado. Imediatamente a empresa acusou o "absurdo", afirmando que ali nunca haviam existido originários e levantando uma enorme placa publicitária na estrada, dizendo "A Aracruz trouxe 1.500 empregos. A Funai trouxe os índios". É a canalhice criminosa que constitui a nossa sociedade. Os indígenas chegaram vistos como criminosos, pra ocupar um pedaço das terras que lhes foram roubadas.

O massacre do Pau Darco marca mais uma ação genocida no território nacional, pra vergonha de todos nós, imersos em valores falsos, induzidos a comportamentos e mentalidades que alimentam esse formato de sociedade, na visão de mundo produzida em laboratórios de pensamento e implantada pela mídia - como dizia Milton Santos (no filme "Conversas com Milton Santos - a globalização vista pelo lado de cá", do Silvio Tendler, documentário importante pra quem quiser formar uma visão de mundo própria, fora do padrão superficial que nos é imposto).

A barbárie social predomina, em áreas urbanas e rurais, em toda parte. A ação da polícia de Pau Darco, sob as ordens de um juiz local, não é novidade alguma. Vi o ódio das forças de segurança muitas e muitas vezes contra os pobres, urbanos ou rurais, que não se conformam com as injustiças que sofrem no cotidiano. Pelo que vejo, está carimbado na mente desses agentes que pobre tolerável é o de cabeça baixa, conformado em seu sentimento de inferioridade e impotência, agradecido por ser explorado e maltratado pelo sistema social - que é a "vontade de Deus", fazer o quê, né... Pobre que levanta a cabeça, questionando a injustiça social, reivindicando direitos constitucionais, é comunista, subversivo, inimigo da sociedade e da "democracia" - essa farsa absurda que descara o poder econômico, do mercado financeiro, do latifúndio, dos bancos e mega-empresas, sempre um punhado de parasitas podres de ricos que compram os candidatos em suas campanhas eleitorais e determinam as bases das políticas falsamente públicas.

Toda solidariedade às famílias dos assassinados, que ao menos se perceba como funciona esta sociedade anti-humana onde o patrimônio e o lucro valem mais do que a vida - não só a humana, mas todo o tipo de vida, o meio ambiente, as águas, as florestas, os micro-organismos, toda a base biológica da harmonia natural, da saúde do planeta. Uma sociedade injusta, perversa, covarde e suicida - em benefício de pouquíssimos e em prejuízo de todos nós.

http://apublica.org/2017/05/pau-darco-urgente-testemunhas-oculares-do-massacre-reforcam-tese-de-execucoes/

https://outraspalavras.net/deolhonosruralistas/2017/05/25/massacre-de-pau-darco-liga-dos-camponeses-diz-que-fazenda-fica-em-terra-publica/

http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12586-pobre-para

Aqui se vê retrocesso no procedimento padrão, continuado, permanente desde a invasão européia. A Carta Capital é a esquerda de elite acadêmica, natural a visão sem pé no chão, embora também valiosa nas buscas de informação: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/para-sangrento-para

Na visão esterilizada da Globo, se vêem alguns elementos dispersores, embora os fatos sejam inegáveis e contundentes. Representantes de movimentos sociais continuam afirmando que a polícia é "despreparada", cegos ao fato que ela é preparadíssima pra fazer o que faz, que as forças de segurança existem contra os mais pobres desde sempre, porque são criadas pelas elites e não pela população. A necessidade de mídias independentes dos interesses comerciais se apresenta como pra "...enfrentar a guerra de comunicação e disputar a narrativa dos acontecimentos nas mídias sociais e alternativas para fazer frente a alguns parlamentares, comunicadores e grupos de policiais que estão incentivando a violência e criminalizando os trabalhadores assassinados" que estão incentivando a violência e criminalizando os trabalhadores assassinados". A mídia não pode assumir que esta é a pauta rotineira do seu "trabalho de comunicação", favorecer sempre a concentração de riquezas e poder, numa sociedade pobre de espírito. Taí: 
http://g1.globo.com/pa/para/noticia/vigilia-denuncia-violencia-no-campo-uma-semana-apos-chacina-em-pau-darco.ghtml

https://www.brasildefato.com.br/2017/05/31/chacina-em-pau-darco-tem-as-mesmas-raizes-do-massacre-de-carajas/

2 comentários:

  1. Adoro ler seus textos porque vc escreve a verdade, bem diferente da midia nojenta.
    Todos deveriam ler os seus textos para poder despertar.
    Obrigada!

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  2. Sou formado em Comunicação Social, mas nunca exerci a profissão para não fazer parte dessa mídia opressora e manipuladora que controla a massa !
    Abraços Lorival

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